"A misericórdia e a verdade se encontraram...” (Sl 85.1O)
HAVIA
certo Pai de família, um Rei poderoso, que tinha quatro filhas. Uma se
chamava Misericórdia; a segunda, Verdade; a terceira. Justiça; e a quarta, Paz;
de quem se diz: "A Misericórdia e a Verdade se encontraram; a Justiça e a
Paz se beijaram'1. Ele tinha também certo Filho muito sábio, a quem
ninguém se comparava em sabedoria. Tinha igualmente certo criado a quem havia
exaltado e enriquecido com grande honra; pois Ele o fizera segundo sua própria
semelhança e similitude, e isso sem mérito precedente por parte do criado. Mas
o Senhor, como é o costume com tais mestres sábios, desejava prudentemente
explorar e conhecer o caráter e a fé do seu criado, se este lhe era ou não
digno de confiança. Assim Ele deu-lhe uma ordem fácil, e disse: "Se tu
fizeres o que eu te digo, eu te exaltarei a maiores honras; se não, tu
perecerás miseravelmente".
O criado ouviu a ordem, e sem demora, a
infringiu. Por que preciso dizer mais? Por que preciso retardá-lo com minhas
palavras e lágrimas? Este criado orgulhoso, obstinado, altivo e inchado de
vaidade, buscou uma desculpa para sua transgressão e colocou toda a culpa no
seu Senhor. Pois quando ele disse: "A mulher que me deste para estar
comigo, me enganou", ele jogou toda a culpa no seu Criador. O seu Senhor,
mais bravo por tal conduta contumaz do que pela transgressão da ordem, chamou
quatro dos mais cruéis executores e ordenou que um deles o lançasse na prisão,
que outro o estrangulasse, que o terceiro o decapitasse e que o quarto o
afligisse com tormentos atrozes. Tão logo se oferecer ocasião, eu lhes darei o
nome de cada um dos atormentadores.
Esses torturadores, estudando como pôr em
execução a própria crueldade, levaram o miserável homem e começaram a afligi-lo
com toda sorte de castigos. Mas uma das filhas do Rei. por nome Misericórdia,
quando ouviu falar sobre este castigo do criado, correu apressadamente à
prisão. Olhando para dentro e vendo o homem entregue aos atormentadores, não
pôde deixar de ter compaixão dele, porque é sua característica ter
misericórdia. Ela rasgou as roupas, bateu palmas e deixou o cabelo cair solto
em torno do pescoço. Chorando e gritando, ela correu ao Pai e, ajoelhando-se
diante dos seus pés, começou a dizer com voz séria e dolorosa: "Meu Pai
amado, não sou eu tua filha Misericórdia? E tu não és chamado misericordioso?
Se tu és misericordioso, tenha misericórdia de teu criado. Se tu não tens misericórdia
dele, tu não podes ser chamado de misericordioso; e se tu não és
misericordioso, tu não podes ter a mim, Misericórdia, como tua filha".
Enquanto ela argumentava com o Pai, sua irmã, Verdade veio e perguntou por que
Misericórdia estava chorando. "Sua irmã, Misericórdia", respondeu o
Pai, "deseja que eu tenha piedade daquele transgressor orgulhoso, cujo
castigo designei". A Verdade, quando ouviu isto, ficou muito irada e olhou
duramente para o Pai. "Não sou eu", disse ela, "tua filha
Verdade? Tu não és chamado verdadeiro? Não é verdade que tu estabeleceste uma
punição para ele e o ameaçaste com a morte por tormentos? Se tu és verdadeiro,
tu seguirás o que é verdadeiro: se tu não o seguires, tu não podes ser
verdadeiro; se tu não és verdadeiro, tu não podes ter a mim, Verdade, como tua
filha". Neste ponto, vocês percebem, "a Misericórdia e a Verdade se
encontraram". A terceira irmã, isto é, a Justiça, ouvindo esta discussão,
contenda, disputa e pleito, e convocada pelo clamor, começou a inquirir a
causa da Verdade. E a Verdade, que só podia falar o que era verdadeiro, disse:
"Esta nossa irmã, a Misericórdia, se é que ela deve ser chamada de irmã,
visto que não concorda conosco, deseja que nosso Pai tenha piedade daquele
transgressor orgulhoso". Então a Justiça, com um semblante bravo e meditando
num desgosto que ela não tinha esperado, disse ao Pai: "Não sou eu a
Justiça, tua filha? Tu não és chamado justo? Se tu és justo, tu exercerás
justiça no transgressor; se tu não exerceres essa justiça, tu não podes ser
justo; se tu não és justo, tu não podes ter a mim, Justiça, como tua
filha". Então aqui estavam, de um lado, a Verdade e a Justiça, e de outro,
a Misericórdia. A Paz fugiu para um país muito distante. Pois onde há discussão
e contenda, não há paz; e quanto maior a contenda, para mais longe a Paz é
afugentada.
Então, estando uma de suas filhas
perdida, e as outras três em calorosa discussão, o Rei achou extremamente
difícil encontrar uma maneira de determinar o que deveria fazer, ou para qual
lado deveria inclinar-se. Pois se desse ouvidos à Misericórdia, Ele ofenderia a
Verdade e a Justiça; se desse ouvidos à Verdade e à Justiça, não poderia ter
Misericórdia por sua filha; e, não obstante, fazia-se necessário que Ele
fosse misericordioso e justo, pacífico e verdadeiro. Havia grande necessidade
de um bom conselho. Portanto, o Pai chamou seu Filho sábio, e o consultou sobre
o assunto. Disse o Filho: "Dai-me, meu Pai, este presente assunto para
conduzir, e eu castigarei o transgressor para ti, e trarei em paz para ti as
tuas quatro filhas". "Estas são grandes promessas'1,
respondeu o Pai, "se a ação concordar com a palavra. Se tu podes fazer o
que dizes, eu agirei como tu me exortares". Tendo recebido o mandato real,
o Filho levou consigo sua irmã Misericórdia. "Pulando montanhas, ignorando
colinas", eles chegaram à prisão, e "olhando pelas janelas, olhando
pelas grades", viu o criado encarcerado, barrado da vida presente,
devorado pela aflição, e "desde a planta do pé até ao alto da cabeça não
havia nele nada são". Fie o viu no poder da morte, porque por ele a morte
entrou no mundo. Ele o viu devorado, porque, quando um homem está morto, ele é
comido pelos vermes. E porque agora tenho a oportunidade de lhes falar, vocês
saberão os nomes dos quatro atormentadores. O primeiro, que o colocou na prisão,
é a Prisão da vida presente, da qual se diz: "Ai de mim, que sou
constrangido a morar em Meseque". O segundo, que o atormentou, é a Miséria
do mundo, que nos ataca com todos os tipos de dor c miséria. O terceiro, que o
estava matando, é a Morte, que destrói e a tudo mata; o quarto, que o estava
devorando, é o Verme... Então, o Filho, vendo o seu criado entregue a estes
quatro atormentadores, não pôde senão ter Misericórdia dele, porque a
Misericórdia era sua companheira, e irrompendo na prisão da morte,
"conquistou a morte, amarrou o homem forte, tomou os seus bens" e
distribuiu os espólios. E, "subindo ao alto, levou cativo o cativeiro e
deu dons aos homens". Ele trouxe de volta o criado ao seu país, o coroou
com duplicada honra e o vestiu com uma roupa de imortalidade. Ao ver tal coisa,
Misericórdia não teve mais base de reclamação. A Verdade não achou causa de
descontentamento, porque seu Pai foi achado verdadeiro. O criado havia pago
todas as penas. A Justiça, de igual modo, não reclamou, porque fora executada
a justiça no transgressor; e, assim, "aquele que tinha-se perdido, foi
achado". A Paz, então, quando viu que suas irmàs estavam em concórdia,
voltou e se uniu a elas. E agora, vejam que "a Misericórdia e a Verdade se
encontraram; a Justiça e a Paz se beijaram". Assim, pelo Mediador dos
homens e anjos, o homem foi purificado e reconciliado, e a centésima ovelha
foi trazida de volta ao aprisco de Deus. A este aprisco Jesus nos traz, a quem
seja a honra e o poder para sempre. Amém.
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